segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

CLÁSSICO E ANTICLÁSSICO

Fonte: Revista Veja de 03/03/1999. 


Idade de ouro

Em Clássico Anticlássico, Argan examina a
grandeza e o drama dos gênios renascentistas
Angela Pimenta
No século XV, a cidade italiana de Florença assistiu a uma das primeiras greves da História. Ofendido pela arrogância do arquiteto Filippo Brunelleschi, um grupo de artesãos resolveu cruzar os braços diante da catedral de Santa Maria del Fiore, em fase final de construção. Se os peões não tivessem voltado ao trabalho, talvez hoje a Itália não pudesse orgulhar-se da igreja, que funde alicerces e paredes góticas projetados no século XIII por Arnolfo di Cambio com sua estupenda cúpula renascentista, o "balão levitante" de Brunelleschi. Visto por um compêndio tradicional da história da arte, um motim trabalhista como esse seria mera curiosidade. Mas o crítico e historiador Giulio Carlo Argan (1909-1992) diagnosticou na briga do arquiteto com os artesãos um sintoma do declínio das artes e dos ofícios medievais e o nascimento da arquitetura moderna. A nova era trazia a divisão — e a conseqüente hierarquia — entre a criação intelectual do artista, no caso o intratável Brunelleschi, e a mera execução de seu projeto, a cargo dos pedreiros. Numa tradução fluente de Lorenzo Mammì, o livro Clássico Anticlássico, de Argan (Companhia das Letras; 497 páginas; 43 reais), reúne trinta ensaios sobre a renascença escritos no decorrer de mais de cinqüenta anos. Claro, preciso e inspirado, é uma obra fundamental para a compreensão da arte renascentista.

Ao analisar dados como a greve dos pedreiros de Florença à luz do humanismo da época, o autor propõe uma visão menos determinista e mais enriquecedora do período estudado. Antes dele, os críticos costumavam dividir os artistas renascentistas em duas tribos: a dos clássicos, como Michelangelo, tidos como herdeiros diretos dos gregos e romanos, e a dos anticlássicos, como Botticelli, "desobedientes" aos cânones da Antiguidade que regulavam do tema à perspectiva de um quadro. Sob a ótica de Argan, dono de sólida formação marxista, personagens como Michelangelo, Leonardo e Rafael se transformam em homens de carne e osso, sujeitos a contradições e livres dos estereótipos que os marcaram no decorrer de séculos.
No caso de Michelangelo, o autor encontra nítidos traços anticlassicistas em sua obra, expressos, por exemplo, no drama que embalou a criação de seu projeto preferido, o túmulo do papa Júlio II, em Roma, que exibe o majestoso Moisés como figura central. Nele, Michelangelo imaginava criar um monumento clássico inigualável que fundiria arquitetura, escultura e pintura. Essa intenção se mostrava bem de acordo com a filosofia renascentista, segundo a qual o primeiro objetivo do artista seria alcançar uma forma perfeita, à imagem de Deus. Foi aí exatamente que Michelangelo tropeçou. Durante quatro décadas, teve de interromper seu trabalho para, entre outras tarefas, pintar o teto da Capela Sistina, a mando do próprio Júlio II. O resultado é que o projeto do túmulo foi perdendo fôlego e viço. Como nota o autor, "a crise do projeto do túmulo é justamente a crise da síntese das artes", ou seja, a crise do otimismo renascentista. À sua maneira, observa Argan, Michelangelo não coube nos rótulos: foi clássico e anticlássico, "e não era possível ser uma coisa sem ser a outra". Com isso, o crítico não quis dizer que o gênio italiano ficou em cima do muro, mas que se impôs uma tarefa de tamanho vulto que se tornou impossível cumpri-la. Michelangelo tornou-se, assim, tese e antítese — e nisso reside sua grandeza.

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