Fonte: Revista Veja de 03/03/1999.
Idade de ouro
Em Clássico Anticlássico, Argan
examina a
grandeza e o drama dos gênios renascentistas
grandeza e o drama dos gênios renascentistas
Angela Pimenta
No século XV, a cidade italiana de
Florença assistiu a uma das primeiras greves da História. Ofendido pela
arrogância do arquiteto Filippo Brunelleschi, um grupo de artesãos resolveu
cruzar os braços diante da catedral de Santa Maria del Fiore, em fase final de
construção. Se os peões não tivessem voltado ao trabalho, talvez hoje a Itália
não pudesse orgulhar-se da igreja, que funde alicerces e paredes góticas
projetados no século XIII por Arnolfo di Cambio com sua estupenda cúpula
renascentista, o "balão levitante" de Brunelleschi. Visto por um compêndio
tradicional da história da arte, um motim trabalhista como esse seria mera
curiosidade. Mas o crítico e historiador Giulio Carlo Argan (1909-1992)
diagnosticou na briga do arquiteto com os artesãos um sintoma do declínio das
artes e dos ofícios medievais e o nascimento da arquitetura moderna. A nova era
trazia a divisão — e a conseqüente hierarquia — entre a criação intelectual do
artista, no caso o intratável Brunelleschi, e a mera execução de seu projeto, a
cargo dos pedreiros. Numa tradução fluente de Lorenzo Mammì, o livro Clássico
Anticlássico, de Argan (Companhia das Letras; 497 páginas; 43 reais),
reúne trinta ensaios sobre a renascença escritos no decorrer de mais de
cinqüenta anos. Claro, preciso e inspirado, é uma obra fundamental para a
compreensão da arte renascentista.
Ao analisar dados como a greve dos pedreiros
de Florença à luz do humanismo da época, o autor propõe uma visão menos
determinista e mais enriquecedora do período estudado. Antes dele, os críticos
costumavam dividir os artistas renascentistas em duas tribos: a dos clássicos,
como Michelangelo, tidos como herdeiros diretos dos gregos e romanos, e a dos
anticlássicos, como Botticelli, "desobedientes" aos cânones da Antiguidade que
regulavam do tema à perspectiva de um quadro. Sob a ótica de Argan, dono de
sólida formação marxista, personagens como Michelangelo, Leonardo e Rafael se
transformam em homens de carne e osso, sujeitos a contradições e livres dos
estereótipos que os marcaram no decorrer de séculos.
No caso de Michelangelo, o autor encontra
nítidos traços anticlassicistas em sua obra, expressos, por exemplo, no drama
que embalou a criação de seu projeto preferido, o túmulo do papa Júlio II, em
Roma, que exibe o majestoso Moisés como figura central. Nele, Michelangelo
imaginava criar um monumento clássico inigualável que fundiria arquitetura,
escultura e pintura. Essa intenção se mostrava bem de acordo com a filosofia
renascentista, segundo a qual o primeiro objetivo do artista seria alcançar uma
forma perfeita, à imagem de Deus. Foi aí exatamente que Michelangelo tropeçou.
Durante quatro décadas, teve de interromper seu trabalho para, entre outras
tarefas, pintar o teto da Capela Sistina, a mando do próprio Júlio II. O
resultado é que o projeto do túmulo foi perdendo fôlego e viço. Como nota o
autor, "a crise do projeto do túmulo é justamente a crise da síntese das artes",
ou seja, a crise do otimismo renascentista. À sua maneira, observa Argan,
Michelangelo não coube nos rótulos: foi clássico e anticlássico, "e não era
possível ser uma coisa sem ser a outra". Com isso, o crítico não quis dizer que
o gênio italiano ficou em cima do muro, mas que se impôs uma tarefa de tamanho
vulto que se tornou impossível cumpri-la. Michelangelo tornou-se, assim, tese e
antítese — e nisso reside sua grandeza.
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